terça-feira, 29 de novembro de 2011

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada


I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
_ Imagens são palavras que nos faltaram.
_ Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
_ Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem de palavras.


II

Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.


III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas fôrmas de bolo...
A casa tem um dono de letras.
Agora ele está pensando -
        no silêncio líquido
        com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.


IV

Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao fóssil,
ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas negras pedras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!


V

Escrever nem uma coisa
Nem outra -
A fim de dizer todas -
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim, 
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.


VI

No que o homem se torne coisal - corrompem-se nele
        os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que
        empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um
        inauguramento de falas.
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.


VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais reis nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.


VIII

Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas,
        Ovídio mostra seres humanos transformados em
        pedras, vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes já transformados
        falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc.
        Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica,
        edênica, inaugural -
Que os poetas aprenderiam - desde que voltassem às
        crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de
        reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma
        nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.


IX

Eu sou o medo da lucidez.
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas ideias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte que separava o morro do céu
        estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Um descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.






Manoel de Barros, O guardador de águas.